23 de dezembro de 2011

Roteiro de “casas-fantasmas” em Sintra, circuito nocturno


3ª Paragem: Casa Ângela


-Testemunho gravado e apagado –

Ela- Bom, eu não sei a idade da casa. Só sei que deve ser muito antiga, parece aqueles palacetes antigos que vemos nos filmes.
Aquilo das primeiras vezes até tinha graça, aquilo das assombrações na “Casa Ângela” atraía, sobretudo, taxistas, e outros homens de veladas vidas.
Havia clientes que, ao sair, saiam por outra portas que antes estavam cerradas e perdiam-se em salas além da parte da pensão. …Eram tantas as salas que nem nós sabíamos o número.
Como é que eu hei-de explicar melhor a questão das portas? Era como nos filmes de terror, os cenários, entendes? Aqueles quartos tinham todos muitas portas e outras janelas que eram portas ou… pareciam portas e eram janelas …é difícil descrever.

Os clientes despediam-se e, se nós não prestássemos atenção, enganavam-se sempre na porta. Alguns já faziam mesmo de propósito. Conheciam as histórias que se contavam e gostavam de se armar em fanfarrões e avançavam pelas salas no escuro. Mas todos acabavam por dar um grito ou outro, um berro, um palavrão a exorcizar o medo, um soluçar, às vezes. Quanto mais destemidos e aguerridos se haviam mostrado momentos antes... e depois…, depois lá íamos nós, em pequenos grupos, sustendo o riso, com uma lanterna, caçá-los, apavorados, no labirinto das salas….

Eu sei que é difícil acreditar nestas descrições mas nós no início até achávamos graça, gostávamos dessas histórias de terror, sabíamos que só uma pequena parte do palácio estava ocupada com a meia-
-dúzia de quartos da pensão, e o resto estava abandonado, há muito, muito tempo…. Eu nem sei como é que a “Casa Ângela aguentou tantos anos ali, assim.…
As primeiras vezes que nós íamos em pequenos grupos, parecia que víamos outros vultos, outras luzes, mas até nos divertíamos um pouco com as assombrações, até para depois brincar com os clientes, quando os descobríamos empapados em suor. Nós todas não acreditávamos nessas histórias assombradas. Era só mais uma excitação…

E depois… houve aquele homem que entrou em terror, mas em terror, mesmo, e caiu de uma das janelas mais altas que dão para o pátio das traseiras…era da praça de táxis de Sintra.
Eu sei que é meio complicado explicar isto tudo mas você pediu que eu contasse esta história. E não tem problema se não acreditar.
Ele deu um grito como nenhum outro. Gelou o sangue. Só eu entrei para o buscar. Nenhuma quis vir atrás. Mas ninguém ainda pensara que ele havia morrido….
Entrei e ainda só atravessara a segunda sala quando fiquei sem luz na lanterna. Pensei logo em retirar-me mas parecia-me ver claridade a vir por entre as frinchas das portas das salas seguintes. Enfrentei mesmo o medo e avancei.
E o que conto agora não vou mais esquecer. Mas queria tanto contar tudo para depois poder esquecer…

Quando abri a porta seguinte eu estava dentro da vida da família daquele palácio. Eu tinha voltado atrás no tempo, não sei como mas não há outro modo de explicar. A casa estava cheia de convidados solenes e silenciosos, homens e mulheres, de vestes antigas, que me observavam com um olhar de ligeira censura e que, com discretos gestos, me apontavam a direcção a seguir. E eu, igualmente muda, nem sei como prossegui, era tanto o assombro. Avancei por entre aqueles vultos, e entre sofás e chaise-longues de bom gosto, e quadros de família bem desempoeirados, de candelabro em candelabro, de espelho em espelho, e tudo me conduzia à alta janela que dava para o pátio das traseiras, e eu, como que hipnotizada, demorei a reconhecer, nas sombras do chão, o corpo do taxista. Só aí gritei. E, quando olhei, de novo, para dentro, as salas do palácio estavam já devolvidas ao seu estado de ruína….

Desde essa mesma noite não voltei a pôr lá os pés. Soube que a polícia andou por lá e encerrou a “Casa Ângela”. Não sei de mais nada. E, por favor, não me peça mais nada. Acredite no que quiser. Agora, só quero de volta o silêncio dos tempos para poder, de novo, desvanecer-me nas brumas.
FIM

Nuno Vicente
21h45m, 18 de Abril de 2010

1 comentário:

Miguel Fonte disse...



Como dona da casa retratada, sinto-me no dever de esclarecer que se trata de um antigo palacete, com um passado bem resolvido. Lamento se desiludo os espíritos imaginativos que conceberam esta história, cujo enredo, para uma apreciadora do género, como eu, nem está nada de especial. Agradeço o desenho da minha escadaria, que guardarei com carinho.